
A erosão dos arquétipos na era do espetáculo e do consumo
Na aurora da consciência humana, os mitos não eram meras histórias, mas cartografias da alma coletiva. Orientavam o homem primitivo através do labirinto da existência, oferecendo sentido ao caos do mundo. Os arquétipos — o herói, o sábio, o rebelde, o curador, a mãe, o louco — formavam um alfabeto simbólico com o qual a humanidade lia a si mesma.
Hoje, no entanto, vivemos uma era pós-mito. Não porque os arquétipos perderam potência, mas porque foram sequestrados pela lógica mercantil do capitalismo tardio. O que era sagrado tornou-se produto; o transcendente, reduzido a conteúdo. Vivemos em uma sociedade onde tudo o que era vivido diretamente tornou-se representação.
O xamã ancestral tornou-se influencer espiritual, vendendo cursos parcelados. O guerreiro da comunidade transformou-se em coach motivacional corporativo. Os símbolos foram esvaziados de sentido e preenchidos com a lógica do consumo.

A crise é espiritual. O sagrado não morreu — foi privatizado. Os deuses agora têm CNPJ, campanhas de marketing e presença digital. A jornada do herói, estrutura mítica universal, virou template de blockbuster. A morte, mistério ancestral, foi higienizada e escondida nos bastidores da modernidade.
Vivemos numa época de positividade compulsória. Até o sofrimento precisa ser produtivo. Os arquétipos sombrios — o trickster, o louco, o destruidor — são neutralizados, pois representam forças que resistem à otimização e ao lucro. Mas são justamente esses símbolos que nos ajudam a atravessar o caos e a transformação.
O desencantamento do mundo não é ausência de mitos, mas sua degradação. O olhar literal tornou-se padrão. Pedra é apenas pedra. A poesia, enquanto forma de ver além do óbvio, tornou-se uma ausência sentida. E, ainda assim, os arquétipos resistem. Irrompem nos sonhos, na arte autêntica, na dor existencial.
A pergunta é: como resgatar o sagrado sem cair em dogmas ou saudosismos? Como fazer dos mitos uma linguagem viva, e não um produto? Talvez o início esteja na coragem de reconhecer essa ferida simbólica — profunda, invisível e devastadora.
Tristan Tell
Poeta e ensaísta
Notas e Referências
- Carl Gustav Jung – Teoria dos Arquétipos e Inconsciente Coletivo
- Guy Debord – A Sociedade do Espetáculo
- Friedrich Nietzsche – “Deus está morto” em A Gaia Ciência
- Joseph Campbell – O Herói de Mil Faces
- Byung-Chul Han – A Sociedade do Cansaço
- Adélia Prado – poesia reunida
- Max Weber – conceito de “desencantamento do mundo”
- Octavio Paz – O Arco e a Lira