
Autoconhecimento, espetáculo e a luta pela reconexão espiritual
Nas sombras silenciosas de Nag Hammadi, jaziam por séculos textos enterrados em jarros de argila, esperando a hora certa de emergir. Entre eles, o Evangelho de Tomé. Poético, místico, direto. Em um de seus versos, ressoa: “Se conhecerdes a vós mesmos, sereis conhecidos e sabereis que sois filhos do Pai vivo.” A centelha divina, aqui, não exige templos ou hierarquias — ela habita o íntimo.
Esse sagrado interior, no entanto, foi sistematicamente suprimido. Instituições temeram o místico. O autoconhecimento, enquanto caminho, ameaça o poder dos intermediários. Não é preciso dogma quando se toca o divino com os próprios olhos. O sagrado que se manifesta sem filtros é, para os donos da religião, profundamente subversivo.

Ao longo da história, os que ousaram mergulhar diretamente no sagrado foram perseguidos. Encarcerados, silenciados, queimados. Não por hereges — mas por serem livres. A tradição espiritual do Ocidente trocou o “conhece-te a ti mesmo” pela confissão institucionalizada. O poder do templo substituiu o silêncio da alma.
Hoje, o sagrado não apenas foi domesticado — foi plastificado. Convertido em produto. O pregador virou celebridade, o culto virou show, o milagre virou promessa com marketing digital. A fé agora é consumida em lives, aplicativos e transferências bancárias.
E mesmo assim, a sede permanece.
Olhar para uma pedra e ver apenas pedra é a grande tragédia espiritual do tempo. O símbolo perdeu sua luz. A poesia foi arrancada do cotidiano. Mas ainda há rachaduras por onde o sagrado escapa. Momentos onde o real, na sua crueza ou beleza, nos fere e desperta.
A espiritualidade verdadeira não confirma o ego — ela o rompe. Não vende conforto — oferece travessia. A liberdade interior, aquela que não precisa de platéia nem palco, ainda resiste. E talvez more ali: na atenção absoluta, na beleza inesperada, no silêncio que não precisa ser explicado.
Redescobrir o sagrado é reaprender a escutar. É perceber que a centelha divina jamais desapareceu — apenas se calou, esperando que abríssemos novamente os olhos.
Tristan Tell
Poeta e ensaísta
Notas e Referências
- Evangelho de Tomé – manuscritos gnósticos de Nag Hammadi
- Elaine Pagels – Os Evangelhos Gnósticos
- Maria Clara Bingemer – teologia e mística
- Michel Foucault – Tecnologias do Eu
- Harvey Cox – The Market as God
- Adélia Prado – poesia reunida
- Max Weber – conceito de desencantamento
- Zygmunt Bauman – Espiritualidade líquida
- Giorgio Agamben – O que resta de Auschwitz (sobre o profano e o sagrado)
- Simone Weil – A Gravidade e a Graça
- Leonardo Boff – Espiritualidade da Libertação