Biotecnologia: origem microbiológica de substâncias ativas com finalidade cosmética

O setor de cosméticos impulsiona uma economia que vem crescendo muito nos últimos anos. Uma das características dessa área é a necessidade contínua de pesquisas em toda a cadeia produtiva e a introdução de inovações em suas linhas de produto. Essas inovações ocorrem não só na formulação dos produtos, mas também no desenvolvimento de processos de obtenção da matéria-prima.

Muitas substâncias ativas utilizadas na indústria cosmética são de origem vegetal ou animal, mas também podem ser obtidas biotecnologicamente a partir do cultivo de microrganismos, como é caso dos polifenóis, terpenos e carotenóides; ácidos orgânicos; proteínas e aminoácidos; vitaminas; polissacarídeos; ácidos graxos essenciais, esteróides, entre outros.

A utilização de microrganismos na alimentação e na saúde vem se desenvolvendo há séculos e nos últimos anos vem se expandindo nas áreas farmacêutica e cosmética, para a obtenção dessas substâncias ativas em substituição daquelas sintetizadas quimicamente, ou de origem animal (no caso de produtos veganos). Os produtos biotecnológicos mais conhecidos são o pão, a cerveja e o vinho obtidos pela fermentação da levedura Saccharomyces cerevisiae, e, na área da saúde, as vacinas.

Um exemplo na área cosmética é o ácido gálico, um polifenol antioxidante utilizado como estabilizante e conservante, além de ativo em formulações, que é obtido com alto rendimento a partir da decomposição da madeira, e outras fontes ricas em taninos, pela decomposição de alguns fungos do gênero Aspergillus, Penicillium e Rhizopus, tornando o processo mais eficiente e econômico.

Ácidos orgânicos utilizados na cosmética como o ácido glicólico, ácido lático, ácido kójico também podem ser produzidos a partir de microrganismos. O ácido lático, por exemplo, pode ser produzido via fermentação de diferentes fontes de açúcar pelas bactérias ácidos láticas (probióticas), alternativamente a fermentação do leite, ou seja, sem utilizar substratos de origem animal, possibilitando a elaboração de produtos veganos.

Os polissacarídeos obtidos biotecnologicamente também vêm sendo muito utilizados na área cosmética, conhecidos como a nova geração de substâncias para os cuidados do cabelo, formando uma película flexível e resistente nos fios que minimizam os danos e colaboram para a reconstrução capilar. Esses polissacarídeos também são muito utilizados como estabilizante, gelatinizante, espessante e emulsificante nas formulações cosméticas. Alguns exemplos são a goma xantana produzida pela bactéria Xanthomonas campestris; a dextrana, produzida pela bactéria ácido láctea Leuconostoc mesenteroi; e também as β-glucanas, conhecidas como fibras solúveis presentes nos cogumelos comestíveis e medicinais.

No âmbito da ampla biodiversidade brasileira, esses cogumelos constituem uma importante fonte de substâncias bioativas. As atividades farmacológicas são particularmente atribuídas aos seus componentes estruturais como é caso das β-glucanas, ou aos metabólitos secundários, oriundas tanto do próprio cogumelo (fase reprodutiva) quanto do micélio (fase vegetativa).

Muitos desses cogumelos pertencem ao filo Basidiomycota, inclusive a espécie Agaricus brasiliensis, nativa de Mata Atlântica. Esse fungo tem sido amplamente consumido e estudado devido às suas propriedades nutricionais e medicinais, relacionadas principalmente às β-glucanas presentes em sua parede celular, ou ainda, aos componentes extracelulares secretados pelo fungo no meio de cultivo.

A esses polissacarídeos são atribuídas atividades biológicas imunomoduladoras, anti-inflamatória, antitumoral, antimutagênica e antiviral, sendo no conjunto denominadas modificadores da resposta biológica, pois interagem e modificam a resposta imunológica (biorregulação) do hospedeiro.

Essa modulação do sistema imunológico atua de forma específica, ou seja, se a pessoa tem alergias ou tendinites, por exemplo, irão atuar diminuindo as respostas inflamatórias. Por outro lado, quando a pessoa está sempre com gripes e resfriados o extrato estimula o sistema imunológico a se tornar mais ativo, e combater possíveis vírus e bactérias, e até mesmo células tumorais.

Considerando que a pele é o nosso primeiro e maior sistema imunológico, essas substâncias também podem ser utilizadas dermatologicamente, visto que atuam diretamente sobre os queratinócitos, fibroblastos, e melanócitos, e também em células propriamente imunológicas como macrófagos, linfócitos T e B, entre outras.

Para a obtenção dessas substâncias é necessário cultivar os cogumelos, que também é um processo biotecnológico, tanto no cultivo tradicional em substratos sólidos a partir de palhas, madeira, dentre outros, como também nos processos alternativos como o cultivo submerso em meio líquido utilizando biorreatores, “fermentadores” como na área da cerveja e vinhos.

Os cultivos em biorreatores também são utilizados nos processos biotecnológicos para o aumento da escala produtiva de outros microrganismos, na cultura de células e tecidos vegetais, visando à produção de vitaminas, antibióticos, enzimas, anticorpos, hormônios, entre outros. Esse método é utilizado em escala industrial, pois se podem controlar melhor os fatores nutricionais e físico-químicos, obtendo-se extratos padronizados ricos em substâncias ativas, a partir de um processo de extração mais simples e rentável.

No cultivo tradicional de cogumelos, além de necessitar de um longo período para a sua produção, há o desperdício do micélio no substrato colonizado, que geralmente é descartado depois do cultivo e coleta dos cogumelos. Enquanto no cultivo submerso em biorreator, podem-se aproveitar todos os compostos do fungo, inclusive as substâncias ativas excretadas no meio, aumentando o seu rendimento. O principal desafio desse tipo de cultivo seria garantir uma demanda de oxigênio suficiente para o crescimento desses microrganismos aeróbios, com modelos de biorreatores construídos com essa característica.

Quando os cogumelos são descobertos e identificados, geralmente são depositados em micotecas e bancos de germoplasma com interesse cada vez maior, em preservar e manter o estoque dos microrganismos também devido ao interesse biotecnológico e econômico, principalmente ao valor agregado relacionado aos produtos e substâncias ativas. Para tanto, os métodos de preservação devem garantir a viabilidade dos fungos por longos períodos de tempo, sem que haja alterações morfológicas e/ou fisiológicas a fim de se obter o produto desejado. No cultivo em meio líquido, também se diminui a possibilidade de ocorrerem tais alterações genéticas do fungo, sendo um requisito essencial para garantir a reprodutibilidade do processo.

Como é bem conhecida, a obtenção de matérias-primas, de forma constante, com qualidade e em quantidades compatíveis à produção de produtos em grande escala, é um dos gargalos da utilização de produtos naturais na indústria cosmética. Sendo assim, o desenvolvimento do processo de produção de micélio em biorreator, sem depender da complexa e variável cadeia produtiva dos cogumelos no meio ambiente, poderia ser um fator chave para o desenvolvimento de novos produtos de forma mais sustentável. Recentemente, eu em colaboração com alguns autores publicamos uma revisão sobre esse assunto, onde descrevemos melhor o importante processo de cultivo fúngico em biorreatores, e ademais abordamos as diversas propriedades dermatológicas de suas substâncias ativas, entitulado Fungal polysaccharide production for dermatological purposes como parte do livro Polysaccharides of Microbial Origin. Biomedical Applications (2021) da editora Springer Nature.


Dra. Carla Camelini
Biotecnóloga, Farmacêutica, Fundadora dos Cosméticos Sole Vitae
https://www.instagram.com/sole_vitae

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