Qipao – O amor que morre ao lado! Um conto de Tristan Tell

Na rua Galvão Bueno, em São Paulo, em um apartamento minúsculo de quarto, sala e banheiro, Li Wei e Mei Ling sentavam-se à mesa para o café da manhã. A cozinha, apesar de apertada, abrigava o ritual diário de preparar uma refeição simples, mas reconfortante.
Mei Ling preparava o lamen com destreza. Em uma panela grande, ela fervia água e cozinhava o macarrão. Enquanto isso, em outra panela, refogava alho e gengibre picados no óleo vegetal, adicionando a parte branca da cebolinha, o molho de soja e sal. O aroma familiar preenchia o ar, trazendo um breve consolo.
Li Wei, sentado à mesa, observava em silêncio. Trinta anos juntos, e agora parecia que tudo o que restava eram horas intermináveis de solidão e contas atrasadas. Seus filhos, sem futuro, haviam perdido as esperanças em um país politicamente sem rumo.
Mei Ling despejou o caldo quente sobre o macarrão, adicionando os vegetais e um ovo, cuidadosamente cozido. Ela finalizou com um toque de cebolinha verde e um fio de óleo de gergelim, entregando a tigela a Li Wei.
Enquanto comiam em silêncio, refletiam sobre as constantes mudanças que a vida havia lhes imposto. Lembravam-se de sonhos abandonados e oportunidades perdidas. Admitiam, com um nó na garganta, que após três décadas juntos, não haviam conseguido vencer. A vida agora era uma espera silenciosa, uma contagem regressiva dolorosa.
Mei Ling guardava, numa caixa de papel envolvida, seu qipao vermelho como um símbolo de uma vida nova. Embora seu corpo não fosse mais vibrante, ainda cabia naquele vestido, que para ela representava a possibilidade de vida após a morte, de um novo encontro, uma nova oportunidade. Ela sonhava estar em paz um dia, passeando pelas ruas da cidade descalça, vestindo o qipao, em um dia lindo de chuva, uma visão que só caberia em um poema de amor.
Ambos apreciavam o lamen juntos. Mei Ling divagava sobre seus sonhos enquanto Li Wei lamentava a vida desprovida de valor, ordinária e tão pequena que teve, uma vida que nunca alcançou o topo de qualquer coisa e, sendo assim, era quase como todo mundo. Uma lágrima solitária escapou dos olhos de Li Wei, caindo e se misturando ao caldo fumegante do lamen, que embassava a janela da mesinha na cozinha. O vapor oferecia um momentâneo véu de privacidade, um respiro em meio à dura realidade que os cercava.
As horas passaram e a vida também passou levando um pouco mais dos dois, horas findas… como que predestinadas a ferir o amor.
Li Wei, aos quase 60 anos, se despediu e saiu para mais um dia de trabalho em algum ponto qualquer da cidade que nunca dorme, mas agora sem o compromisso da vitória ou de alguma chance na vida, ajeitando o casaco, pois fazia frio em São Paulo. Mei Ling, por sua vez e, como de costume, cuidaria de algumas poucas plantas dispostas aqui e ali no apartamento minúsculo de quarto, sala e banheiro, alimentaria e trocaria a água dos gatos, lavaria a louça e esperaria o dia vencer a manhã…
Eram 6h30.

O conto de Tristan Tell : “Qipao – O amor que morre ao lado” que se encontra no 7º livro do autor de mesmo nome e outras históras , explora temas existenciais profundos, como o significado da vida, a passagem do tempo e a busca por propósito. A filosofia existencialista é evidente na narrativa, onde os personagens se confrontam com a realidade de suas existências, refletindo sobre as escolhas que fizeram e os sonhos que abandonaram. O conto ilustra a condição humana de estar “só no mundo” (Heidegger) e a angústia (Sartre) que surge ao enfrentar a verdade nua e crua da vida. A espera silenciosa, a contagem regressiva dolorosa, e a aceitação da falência de seus sonhos representam a busca contínua por sentido em um mundo que muitas vezes parece indiferente e sem rumo.

Autor: Tristan Tell – São Paulo/6h30/Julho

www.tristantell.com.br

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