Nem todos ouvem a mesma língua – Por Tristan Tell

Sobre os ruídos internos, a estética do silêncio e a solidão criativa em um país que consome violência, mas rejeita delicadeza.


Escrevo como quem tateia no escuro. Como quem encontra beleza em ruídos internos, nos silêncios que não cabem nas legendas instantâneas da vida comum. Sempre foi assim. Desde que comecei a alinhar palavras, percebi que meu texto não era de fácil digestão. Não porque fosse hermético — mas porque ele exige pausa. E isso incomoda.

As pessoas ao meu redor consomem o grotesco com naturalidade: violência no jornal do almoço, filmes de estupro e tráfico nas plataformas, sangue em horário nobre. Tudo isso é tolerável — desde que não exija reflexão. Mas quando coloco um poema na rede, mesmo que refinado, mesmo que denso, o resultado costuma ser o desprezo ou a debandada.

“O silêncio tem valor estético”, eu aprendi. Mas aqui, ele é confundido com falta. Falta de conteúdo, de emoção, de linearidade. Como se a ausência de grito fosse ausência de voz. Como se delicadeza fosse erro.

O filósofo Theodor Adorno dizia que “escrever poesia depois de Auschwitz é um ato bárbaro”¹, e talvez ainda seja — mas não no sentido da negação, e sim da urgência. Poesia, aqui, também é denúncia. É resistência em forma de forma.

Em outras línguas e terras, há eco. Na Dinamarca, na Inglaterra, encontro leitores atentos. Gente que não tem pressa de entender — apenas de sentir. Lá, há espaço para camadas. Aqui, muitas vezes, o espaço é tomado por urgências estéticas e morais que parecem ter mais a ver com consumo do que com criação. É sintomático: Clarice Lispector foi por anos chamada de “esquisita” antes de se tornar símbolo. Lúcio Cardoso, outro gênio sensorial, viveu e morreu às margens da recepção que merecia².

Eu entendi, com o tempo, que estou operando num registro mais simbólico. Um campo onde a palavra não é só o que diz, mas o que revela. Onde o não dito tem peso, forma e som. Onde o texto é um espelho embaçado que convida — não obriga — à aproximação.

Às vezes me dizem: “se não gosta do que vê aqui, por que não vai embora?” — como se amor à terra natal fosse sinônimo de aceitação cega. Mas o amor verdadeiro é crítico, inquieto, feito de tentativa e insistência. Albert Camus escreveu: “A arte e a rebelião nascem da mesma ferida.”³ A minha é aqui.

E essa logística de debandada não me assusta. Não me representa. No Brasil, estar fora do rebanho é quase uma vantagem. Porque todo rebanho hoje está confortavelmente confinado — e eu estou livre. Pelo menos por hora. E pretendo permanecer, mesmo após seis décadas de vida. A liberdade que encontrei não pede plateia, apenas caminho.

Sigo escrevendo. Não por vaidade, nem por esperança de aplauso. Mas porque isso é o que me ancora. Minha escrita é meu idioma de sobrevivência. E quem for capaz de escutar — vai entender que o estranho, às vezes, é apenas o belo disfarçado de coragem.


Notas de rodapé:

¹ Theodor W. Adorno (1903–1969) – Filósofo alemão, membro da Escola de Frankfurt. Duas obras principais: Dialética do Esclarecimento (1947) e Minima Moralia (1951). Refletiu sobre arte, política e cultura de massa. A frase “Escrever poesia depois de Auschwitz é um ato bárbaro” aparece em seu ensaio Cultural Criticism and Society (1949), referindo-se à crise ética e estética da arte após o Holocausto.

² Lúcio Cardoso (1912–1968) – Escritor, dramaturgo e poeta brasileiro. Conhecido pelo romance Crônica da Casa Assassinada (1959), uma obra-prima da literatura psicológica brasileira. Também autor de Maleita (1934). Sua escrita introspectiva e subjetiva foi pouco compreendida em vida, mas hoje é reverenciada.

³ Albert Camus (1913–1960) – Escritor e filósofo franco-argelino, prêmio Nobel de Literatura (1957). Autor de O Estrangeiro (1942) e O Mito de Sísifo (1942). Refletiu sobre o absurdo, a liberdade e a condição humana. A frase sobre arte e rebelião aparece em O Homem Revoltado (1951), onde defende a criação artística como forma de resistência.

Tristan Tell

Bacharel em Comunicação, habilitado em Cinema pela FAAP(1986-90). Jornalista c/ 31 anos de experiência em veículos de comunicação como TV Record, TV Bandeirantes e diversos jornais.

Músico ( EP – Espinha Dorsal) e Poeta é Autor de 06 livros

www.tristantell.com.br

https://www.instagram.com/tristantell_escritor

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